A característica mais visivelmente marcante no traçado arquitetônico de ruas e vielas em estilo português é o desordenamento e sinuosidade não-planejada. E em considerando as principais cidades brasileiras da Era Colonial e as maneiras com que se ordenavam paulatinamente os espaços urbanos, a Cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos e São Sebastião do Rio de Janeiro cresceram como entrepostos de caselas e cortiços, dispostos de acordo com as vontades dos corações que as erguiam, sem planeamento. Vigorava então na terra Brasilis o pacto colonial que a colocava, no âmbito do comércio mundial, no papel de fornecedora de matérias-primas ao país de origem da corte que sobre ela reinava. Tendo em vista a situação, não é difícil concluir que a grande massa da população negra e escravizada, cativa da terra, permanecia vinculada ao meio rural, e as pequenas e desordenadas aglomerações urbanas estavam servientes às questões administrativas da Metrópole na Colônia e abrigando um incipiente grupo de mercadores e comerciantes, muito provavelmente portugueses ou brasileiros de elite. Ainda assim, prevalecia a população negra de origem africana na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, sejam escravos ou alforriados desempenhantes de pequenas atividades folclóricas coloniais pela cidade. Importante não deixar de vislumbrar o caráter estancado da estrutura social: ainda que fosse possível ascender socialmente, seria muito raro que tal acontecesse a um ex-escravo.
E assim, cruzando os dias, foi a capital do Brasil colonial, sem significativas transformações, até o importante século XIX, século que trouxe a corte portuguesa para o Rio de Janeiro e fez da cidade periférica o centro das tomadas de decisão de toda a estrutura imperial portuguesa. O Rio de Janeiro passaria então de capital colonial para capital central do Império Português. Não estava, todavia, devidamente preparada para tal. Cidade colonial, faltava-lhe estrutura arquitetônica para abrigar as gentes da corte. Mas as transformações operadas até então, poder-se-ia dizer, estão insignificantes quando comparadas àquelas labutadas pelas mãos da República de 1889. O final do século exigiu do Brasil nova postura frente ao mercado mundial. A onda civilizatória operada pelo imperialismo europeu na África e as pressões europeias em nome da intelectualidade, da beleza, da civilização como forma de ganhar os corações na efetivação da mundialização de mercados forçou o novo país sul-americano a modernizar-se. E um porto mortífero e insalubre como o Rio de Janeiro não poderia sediar desta forma o centro republicano de poder do país. Era preciso modernizá-lo em três frentes: o porto, pequeno e incapaz para a demanda crescente; as ruas do centro da cidade, estreitas e desconexas; as insalubridades das ruelas, desprovidas de saneamento e aglomerando em cortiços populações ex-escravas em situações de promiscuidade (já havia ocorrido o 13 de maio).
Perigoso aos olhos reformistas a quantidade de escravos alforriados pelo 13 de maio, provenientes dos mais próximos cantos da federação fluminense, trancafiados em cortiços do centro da cidade, sem que a economia os pudesse absorver como mão-de-obra. Uma nova era se impunha necessária para a capital do país, moderna, bonita e afrancesada, em um projeto de construção de uma elegante Paris tropical, cartão postal do novo Brasil, agora republicano e em dia com a modernidade. E para destruir os remanescentes coloniais perniciosos, novas avenidas foram abertas no centro da cidade do Rio de Janeiro: largas e elegantes, cuja mãe foi a Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), um desfile das modernidades e novas mentalidades francesas no Rio de Janeiro. Entretanto as novas passarelas só seriam possíveis da destruição dos cortiços insalubres, onde vivia a pobreza da cidade. E assim foi feito: postas abaixo as velhas construções e sem qualquer tipo de indenização, a massa empobrecida não havia mais onde se abrigar. A solução encontrada foi improvisar casebres com os entulhos da destruição nas encostas dos mares de morros da capital, privilegiada por uma intensa ondulação orográfica, até então praticamente inacessível e pouco vislumbrada pelas elites locais, que se concentravam nas baixadas que bordeavam a Baía de Guanabara, principalmente Glória, Catete e Flamengo.
E nasce assim a primeira ocupação irregular de encostas montanhosas do Rio de Janeiro, desvalorizada, desprovida de leis e aonde a legalidade não adentrava, por negligência política ou por medo, uma vez que já no início do século XX se noticiava o morro como reduto de desordeiros e sujeitos contra-lei. Geograficamente localizada entre a Central do Brasil e a zona portuária, o pequeno monte abrigou toda a sorte de tipos marginalizados, inclusive os ex-soldados provenientes da batalha de Canudos, razão pela qual apelidou-se o morro de Morro da Favela. Evidente está que o apelido se popularizou e foi empregado para qualificar todas as outras ocupações semelhantes da cidade, e décadas mais tarde, todos os tipos de ocupações irregulares do país e até mesmo em outras partes do mundo. Durante anos, a maneira com que o poder público dispunha das favelas sempre nascentes, ora privilegiando seu crescimento e acordando com autoridades locais, ora desestruturando seus espaços para a expansão da atividade imobiliária, separando seus membros que compartilhavam afeições entre si e com seus lugares de pertence, cresce a vulnerabilidade do espaço como potencial reduto de atividades e facções criminosas, que passaram então a fazer do espaço o seu domínio de comandos próprios, desvinculados do funcionamento do corpo central e legal da cidade.
Lorenzo Baroni Fontana