O Rio de Janeiro e a crise de identidade brasileira I

Os laços colonialistas e mercantilistas estabelecidos com a Coroa portuguesa durante cerca de três séculos impossibilitou uma demarcação abrangente identitária de Nação Brasileira em moldes homogeneizantes, como exige todo símbolo. Durante cinco centenas de anos, a formação do povo brasileiro absorveu elementos internacionais variados, sempre no interior de decisões políticas com intentos econômicos ou culturais-cientificistas. Não houve uma tamanha preocupação em definir a brasilidade do povo brasileiro, traços comuns que pudessem identificar o indivíduo brasileiro, fossem eles físicos, psicológicos ou culturais.

O século XIX, ao operar as transformações econômicas em escala global, definindo papeis mercadológicos aos Estados e impondo o progresso como guia mestra essencial, trouxe ao Brasil, agora senhor de seu próprio destino, a incumbência de operar o progresso dentro de bases científicas. Para isso, seria necessário encontrar e esboçar o perfil do brasileiro como o agente preparado para efetuar essa importante transformação. A multiplicidade e a miscigenação dariam margens para a diferenciação, sempre em bases científicas, do que seria conveniente ou não para a elaboração do símbolo da brasilidade.

O Distrito Federal foi a praça ideal para a encenação da modernidade republicana brasileira. O espaço urbano central já havia sido, por volta da segunda década do século XX, reconstruído segundo o modelo francês da Belle Époque e sob a óptica do sanitarismo e da modernização do porto. Essas transformações custaram a invisibilidade por parte do poder público das camadas pobres da população. Sendo uma cidade predominantemente comercial, o Rio de Janeiro viu seu centro inflar de homens e mulheres livres e pobres, prestadores de serviços e responsáveis pela logística da cidade.

Concluíram-se as reformas urbanas e não se considerou uma política habitacional para esta parcela da população. Ademais, provenientes do escravismo, e suscetíveis da miscigenação excessiva que ocorre no litoral brasileiro, não correspondiam ao ideal de brasilidade. Até a Primeira Grande Guerra, as teorias científicas racistas exerceram influência determinante no Brasil, o que impulsionava o desejo de identificação com o padrão racial europeu. O progresso nomeou, por seus padrões de reformas e hábitos culturais importados, a cidade do Rio de Janeiro como a Paris dos Trópicos, preparada para o processo civilizatório, mas de costas para a diversidade cultural presente no seu subúrbio da época (principalmente a zona portuária e Estácio).

A falta de visibilidade dos homens pobres por parte do poder público não extinguiu a necessidade de mão de obra barata para os serviços domésticos e para toda a rede logística da capital brasileira. Concentrando grande parte da fortuna do país no seio de sua crescente malha urbana, o Rio de Janeiro, no decorrer do século XX, assistiu ao estabelecimento de uma curiosa configuração social: à medida em que as reformas modernizantes aumentavam a aura da cidade e o fluxo de capital crescia, grande parcela da massa pobre da população do país descobriu aí brechas de susbsistência, fluindo para o Distrito Federal. Para manterem seu padrão de vida, os abastados necessitam dos serviços prestados pela massa empobrecida da população, que, em um primeiro momento, não vislumbraram sua absorção em políticas habitacionais consistentes.

O resultado foi a concentração de famílias pobres nos circundantes abastados da cidade, agora principalmente as baixadas litorâneas cariocas. Ao encurtar as distâncias entre sua residência e seu meio de subsistência, o pobre passou a ocupar as encostas das montanhas próximas das várzeas onde residiam os ricos. A disseminação de favelas está intimamente ligada a estes fatores: a proximidade com o seu mercado de trabalho – o que não poderia ser sanado pelo sistema precário de transportes; e a falta de uma política habitacional eficiente. Foi uma estratégia criativa da população pobre de subsistir sem o apoio do poder público.

O pós-guerra e os anos dourados revalorizaram a mestiçagem brasileira, coroando a diversidade como símbolo nacional. A nova intelectualidade carioca cantou os louvores da favela e de seus moradores, em uma tentativa de incrementar a auto-estima brasileira através do Rio de Janeiro, cidade-laboratório principal da operação cultural nacionalista. A cidade foi laureada como Cidade Maravilhosa, aquela onde as extremas belezas naturais convivem com a mais alta diversidade cultural, terra de todos e onde tudo e todos são bem-vindos. A síntese do brasileiro estava no carioca, extrovertido e alegre, e este, por sua vez, era o grande representativo da nação brasileira.

O preconceito da dicotomia morro/asfalto foi parcialmente eclipsada durante os anos dourados pelas conexões entre alta e baixa cultura através da bossa-nova, do samba, do mito Cidade Maravilhosa e da Princesinha do Mar – Copacabana, centro de irradiação do mito. De posse de todo este arsenal simbólico, o Brasil exportou sua posição na modernidade, principalmente a partir do Rio de Janeiro, como um país apto a atrair investimentos de capital, e, ao mesmo tempo, como o balneário mais agradável do mundo para se viver, não importando de onde se é, pois ser carioca é uma posição adquirida. Paralelamente ao aumento de prestígio do Distrito Federal, o interior fluminense caiu em desconexão, sem grandes laços identitários com um município que era politicamente neutro (Rio de Janeiro), advindo daí a oposição fluminense versus carioca e ao relativo abandono da Baixada Fluminense.

Lorenzo Baroni Fontana

Published in: on 16 février 2011 at 17 h 53 min  Laissez un commentaire