A angústia do ator

Possivelmente o final do século XX e o principiar do século XXI sejam, dentre todas as fases históricas do ocidente, parte daqueles tempos mais propícios para a manifestação artística da consciência desejosa de retorno às maravilhas e às fantasias do modo de vida mitológico, como um sintoma do esgotamento de uma consciência positiva-concretista ainda bastante forte que afirma tudo explicar e administrar minuciosamente. As formas de vida exportáveis das grandes metrópoles do século XXI, com seus labirintos encurtadores de distâncias e as luzes eternas que reúnem o dia e a noite em uma coisa só, produzem uma experiência bastante angustiante àqueles que ainda estavam acostumados a acompanhar o movimento de descida do sol no ocaso. A possibilidade de estar e viver em todos os lugares, e participar de tantas formas de vivências culturalmente diversas a abrir-se em um cosmopolitismo hoje tão aclamado é o próprio engodo para a não-identidade. A falta de identidade de um povo ou de um indivíduo é a pior dor emocional que se pode sentir, porque sem ela não há povo nem indivíduo, e resta tão somente um conjunto de células que não sobrevive acima de sua química. É este autoconhecimento que movimenta a alma do sujeito, e suas dores e seus amores se manifestam nele para preservar seu autoconhecimento. O abandono àquele pensamento fixo de exigir as explicações plausíveis que não se entrega ao deslumbramento do mistério nem ao encantamento da imaginação frutífera que o mistério produz pode ser sintoma de uma época que deixou de tratar com carinho valores tão caros como a solidariedade e o respeito à Natureza. Assim, valorizam-se as explicações astrológicas para a vida, e o homem começa a olhar de novo para o céu a fim de buscar orientações e respostas às suas angústias e não a enxergá-lo apenas como um conjunto de gases em uma instabilidade que procura um equilíbrio e que apenas cobre a terra sem nada anunciar para quem vive nela. Um dos sofrimentos mais discutidos a partir do número 2000 desta nova era é o final dos tempos e do mundo, e a literatura e o cinema proféticos arrastam multidões naquela dúvida não confirmada, naquele crer sem crer.

Se na esfera artística da vida do homem a fé realista na ilusão de representação da realidade foi maculada e a representação artística assumiu sua natureza de máscara, no pós-modernismo resta brincar com ela para buscar atingir outros efeitos além daquele de produzir a ilusão do real. Todo este estado de consciência, hodiernamente bastante presente, de um retorno feliz a uma vida rústica primitiva ou pastoral é refutada fobicamente por Luís Fernando Veríssimo, um homem que ainda tenta recuperar um sentido coerente para a vida humana na civilização ultra-tecnológica através de O suicida e o computador. Se lhe angustia o modo de vida do homem contemporâneo, é dentro desta vida que se poderá superá-la e não em uma fuga ilusória para fora dela. O desejo de encarar uma realidade geniosa e não totalmente representável ainda prevalece em relação à fuga ao mundo fantástico dos seres monstruosos e do fim dos tempos. A única solução encontrada no conjunto de contos e crônicas reunidos no livro para este homem pós-moderno enredado em sua própria rede de complicações culturais, entretanto, é o humor irônico, o humor que se tenta desvencilhar de sua dor de estar no mundo, humor que, em tentando ser otimista para recuperar o sentido do tempo presente, nada mais faz do que cair desesperadamente nas profundezas do pessimismo. Este pessimismo e o humor que a seu lado procura amenizar sua dor, tentando convencer-lhe ainda de que existe uma saída por onde se chega a felicidade plena – nem que para isso o caminho seja fazer das tragédias e sofrimentos hodiernos objetos do riso e do deboche, que é, ao final, a natureza da comédia – , perpassa todo o livro, seja nas considerações sobre o estado atual das relações familiares e inter-humanas que se deterioram ou se impossibilitam totalmente, nos enganos trágico-cômicos que determinam para sempre a vida do indivíduo que nasceu para ser torto, na consciência do fim de uma era socialista não realizada, no esgotamento final da fé religiosa – motivo para o sarcasmo –, ou na profundeza abissal que existe entre gerações conviventes. Todas estas situações vividas como reais são encaradas frontalmente, e, para não perder a postura firme diante delas, aparecem as ironias, próprias para encarar as angustias sem sucumbir de vez a elas. Da realidade, ao invés de lágrimas, Luís Fernando arranca gargalhadas.

Em A foto, uma família extensa reunida em ocasião de festividades de final de ano mais por decoro e protocolo do que por afinidades sinceras, trava uma luta de invejas e implicâncias para saber quem seria o infelizardo que bateria a foto da família reunida em torno do bisavô já bastante velhinho – cujo fim parece estar próximo e possivelmente fosse esta sua última passagem de ano –, ao lado de quem todos querem figurar na foto. No desenrolar das infindáveis discussões, o velho levanta-se, bate a foto em que não aparecerá – ele diz que nela apenas ficará implícito – e recolhe-se para dormir.

Em Aquele Rubião, o destino inteiro de um homem comum, chamado Rubião – a memória de sua vida – é determinado no momento de seu velório, ao ser confundido com um dos pró-homens da República. Trata-se de uma traquinagem de um amigo de boemia de Rubião que, ao saber que o amigo estava sendo velado lado a lado com um dos homens mais importantes da República, inverte a identidade de ambos e atrai para seu amigo todas as condolências daqueles que diziam conhecer o prestigiado homem, mas que de fato não o conheciam absolutamente, a não ser de ouvir dizer.

Em O fim de uma era, dois agentes secretos arquiinimigos, ambos anciãos, se encontram em um bar esfumaçado de Berlim Oriental, e nem sequer conseguem mais discutir sobre o sentido das concepções contraditórias que representam, e assim passam a noite a falar sobre trivialidades acerca dos regimes políticos, imprimindo um tom irônico e desmoralizante a comprovar que a política não divide os homens naquilo que a eles é mais essencial, como a curiosidade por bisbilhotices. A luta chega a um ponto de esvaziamento substancial, permanecendo a carcaça esquelética como marca da fortaleza de uma movimentação cessada.

Em O pára-quedas, um padre católico, um pastor protestante, um rabino e um ateu encontram-se juntos em um avião em queda e decidem pôr em prova a existência de cada um de seus deuses. Ao se lançarem do avião em queda livre, aquele a ser salvo por seu deus comprovaria sua verdade. O anjo salvador, entretanto, ampara o ateu e coloca-o no novo convertido, dizendo aos demais que seu Chefe está priorizando o marketing.

Em A bola, um pai orgulhoso de agradar seu filho compra-lhe uma bola, saudoso da grande alegria que vivenciou ao ganhar a primeira bola de seu pai. Ao recebê-la, o filho procura nela as instruções para o manejo de uma máquina, e, depois de descobrir que se trata de uma bola, toma nas mãos um controle de videogame na tela da qual alguns monstrinhos disputam a posse de uma bola.

Em comum o que todas estas historietas possuem entre si é a perplexidade diante da impossibilidade do homem de controlar a realidade complexa e fragmentária do mundo e de que as forças entrelaçadas aos acontecimentos carregam imperceptivelmente o homem a direções desconhecidas, geradores de perplexidade. A perplexidade se materializa diante do desconhecido, do alter, ou daquilo que é contrário a si mesmo, daquilo que é contrário à identidade. A solução encontrada pelo autor para lidar com tal situação angustiante é fazer dela motivo cômico, sem deixar de manifestar a insatisfação através da ironia. Paralelamente, o fazer cômico institui algumas absurdidades que ferem o princípio da ilusão realista que, ao se denunciar falsa, não chega a ser negada em favor do mágico ou do inverossímil, mas é utilizada para desmascarar-se a si própria, tal como aparece tematizada em O ator.

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Ao olho que busca a análise, o conto O ator apresenta-se dividido em três partes que representam três camadas de material mimético. A primeira parte compreende tão somente o primeiro parágrafo, apresentando um homem provavelmente comum que, no fim do dia, chega em casa e é recebido alegremente pela esposa e os filhos e possui como único desejo imediato descansar para o próximo dia. O narrador compõe no parágrafo um conjunto de períodos formados por orações coordenadas entre si, muito propícias para a representação de ações pontuais e sucessivas que o homem desempenha desde que chega em casa. O recorte realizado pelo autor na escolha das ações a serem representadas sugere uma linha contínua de um movimento, bastante realizável no palco, e que se harmoniza de uma forma ainda não muito clara com o título do conto – O ator. De fato, ainda não se reconhece muito claramente esta relação, mas hipóteses podem ser angariadas a partir do título e da maneira bastante prática que o narrador encontrou para apresentar as ações, muito próximo a um roteiro teatral: o homem é um ator a agir em cena; ou o homem é um ator a agir fora de cena, em sua vida privada.

A transição para a segunda parte do conto – manifestado pela aparição da expressão Corta! (e literalmente a expressão corta tematicamente a história, levando-a para outra direção, a segunda parte de uma estrutura) – parece confirmar a primeira hipótese de que o homem é um ator a representar em cena. A segunda parte dissolve a ilusão de realidade da primeira ao fazer surgir a equipe de cinema (ou de televisão) que estava a manipulá-la como uma cena. A primeira cena na qual se construiu uma unidade verossímil do homem que é recebido em casa pela família é desmascarada como cena na segunda parte. Apenas o homem, personagem central da primeira cena, não compreende o que se passa diante dele, e aqui se instaura o conflito e o ponto de interesse do leitor que, tal qual o protagonista, deseja reconhecer e restabelecer a verdade da situação. O comportamento da linguagem, entretanto, – que continua a utilizar períodos compostos de coordenadas e introduz ainda diálogos – permanece idêntica à primeira cena, quase como que rubricas para a ação dramática, o que contribui para elevar a desconfiança do leitor entre as duas hipóteses para a realidade mimética. Por um lado, o texto configura uma forma lingüística e uma situação de ações conjugadas que evidenciam uma cena; por outro lado, no entanto, a reclamação do protagonista pela verdade de sua própria vida contradiz a primeira evidência de uma cena e instaura a possibilidade de um absurdo quase surrealista ao fazer despontar de dentro da intimidade do lar de um homem comum uma equipe cinematográfica com todo o seu maquinário de filmagem.

No cerne desta dúvida eis que aparece um novo Corta! e dissolve mais uma vez a ilusão de realidade da cena, introduzindo a terceira parte do conto. Agora, com a aproximação de uma segunda equipe de filmagem, parece fazer-se acreditar que tanto a primeira quanto a segunda cena, e todos os seus personagens, são eles mesmos uma representação. O homem descobre que o cenário, na verdade, é um cenário, mas permanece a contestação do protagonista por sua verdade. O diálogo que se segue entre o homem e o diretor fortalece a dúvida inicial – o homem a agir em cena ou o homem a agir fora de cena –, uma vez que o estranhamento do protagonista diante da situação e sua determinada convicção de que está em sua casa com sua família é encarada pelo diretor como substância viva da interpretação do ator, que realmente vive stanislavskiamente a personagem. O calor da discussão se eleva ao ponto de ambos travarem uma disputa física, em cujo desenrolar surge uma voz que grita Corta!, finalizando a terceira e última parte do conto. O leitor chega ao fim sem concluir seguramente entre as duas hipóteses iniciais, ainda que aparentemente o terceiro Corta! implique que todas as outras cenas sejam englobadas pela produção de uma cena, e que a realidade seja esta produção de cenas, ou seja, a realidade é que alguém onipresente cria um intrincado de cenas que se englobam no preparo de uma cena dramática.

Aparentemente, talvez, a instauração da dúvida não se legitime diante da objeção de que o foco narrativo de que o narrador se apropria demonstra claramente a situação como um conjunto intrincado de cenas que formam uma cena a ser registrada pela câmara. Dever-se-ia crer mais no que o narrador escolhe a apresentar como evidência do real do que no clamor de uma personagem. Esta personagem, porém, é o próprio protagonista, aquele que inicia, no leitor, o trajeto de leitura, aquele no qual todas as expectações são depositadas desde o início e aquele em quem se deve acreditar, a princípio. Apesar disso, o narrador onisciente das mãos mágicas constrói a situação de forma a parecer que ela mesma se resolve por si – sem a interferência de qualquer sujeito –, um dado irrefutável de realidade para quem está na platéia, do outro lado do livro. Mas, se o narrador é aquele que apresenta e constrói a personagem, e esta não tem direito à vida independentemente daquele, o leitor concluirá certamente que o narrador deseja instituir a dúvida sem resolvê-la, e que, além disso, pode desejar outras coisas ainda, o que não se confirmará indubitavelmente nunca somente a partir do texto, mas a partir de inferências.

O narrador estabelece na primeira cena – um conjunto de ações da personagem que chega em casa, com marcadores tipicamente teatrais –, até a aparição do primeiro Corta!, logo no início do conto, um ponto de partida para o pacto de ilusão com o leitor. Este vislumbrará a cena tal qual descrita pelo narrador e encará-la-á como a realidade estabelecida pela ficção até deparar-se com o primeiro Corta! e o subseqüente desenrolar da cena seguinte. Durante a segunda cena, as indicações de que a primeira constitui uma máscara englobada pela segunda destrói aquele primeiro pacto de ilusão com o leitor ao reafirmar um novo pacto: de que a situação passada é uma cena construída pelos participantes da cena presente. O pacto se renova mais uma vez com o segundo Corta! e com a terceira cena depois dele. A terceira cena engloba as duas primeiras como construção de um engano para um filme. O constante deslocamento do jogo de ilusões a que o leitor adere a cada camada mimética do conto produz a sensação de inquietação pela busca de uma referência verdadeira. Tanto a personagem quanto o espaço que ela ocupa e no qual ela se desloca permanecem ambíguos e as duas hipóteses da realidade do conto permanecem latentes e não confirmadas no imaginário do leitor – o discurso e o embate do protagonista sinalizam que este é um pai de família ordinário que está em seu lar, inexplicavelmente invadido por uma equipe de filmagem que o toma por um ator; entretanto, as evidências concretas advindas da manipulação que o narrador faz do material mimético, ao criar camadas de representação, sinaliza o contrário do que antes foi dito: este homem é um ator e seu discurso é um meio pelo qual ele cria a realidade de sua personagem. Opta-se, enfim, por seguir esta última hipótese, a de que o homem é um ator em cena a interpretar uma personagem.

O tom lúdico do conto em relação à percepção da personagem do ator de sua própria realidade se reflete na própria forma do conto, que joga com a percepção do leitor sobre a realidade da situação. Este jogo duplo de que personagem e leitor são vítimas produz neste último uma aproximação com o primeiro, o que desencadeia uma identificação. Tudo está estruturado para provocar um mal-estar diante da falta de certeza sobre o que se lê, e o sentido é recuperado pelo título que já avisa que o protagonista do conto é um ator – um ator de diversas cenas que se englobam e se perpetuam infinitamente. Também o homem do século XXI vive a incerteza de momentos fragmentários que se englobam, mas diferentemente do ator – que se supõe ser conhecedor de sua natureza e, assim, no conto, mantém firme sua identidade de ator a todo momento –, o homem do século XXI vive a multiplicidade em estado de perplexidade e não pode ser fiel a algo que essencialmente não compreende profundamente e não possui, a identidade. A personagem interpretada pelo ator – este último, a personagem do conto – é arrastada pelas circunstâncias que suprimem seu controle sobre sua própria vida. Ainda que ele se debata para tentar escapar de uma realidade que não é a sua, esta realidade sempre se lhe apresenta como mais poderosa e engloba por inteiro sua subjetividade, deixando-o sem o poder de agir sobre a própria vida. Os acontecimentos do mundo se lhe passam como uma ação dramática encenada para uma platéia emocionada e embebida na própria perplexidade. Sua voz que exprime sua subjetividade é inaudível, e tende a enfraquecer cada vez mais diante da pluralidade infinita e mal compreendida dos acontecimentos que se desenrolam no palco do mundo. Estes acontecimentos captam física e emocionalmente o sujeito em uma velocidade tal que não existe mais o tempo hábil para, na sua intimidade, o sujeito ponderar a realidade circundante e harmonizar a energia dos sentimentos conflitantes geradores de angústia dentro de si. A realidade externa – convencionada socialmente – apresentará previamente preparadas todas as máscaras necessárias à entrada e participação nas cenas da vida, que, independentemente de não estarem coesas entre si, compreendem o caminho a ser seguido para sobreviver à velocidade dos acontecimentos no tempo. Há que se agir – e agir conforme algumas técnicas cênicas – para sobreviver, nem que para isso se sacrifique a própria formação identitária e de caráter.

Existem dois pólos complementares da representação da identidade no conto: uma delas está presente no sujeito-ator (personagem do conto); a outra está presente no sujeito-personagem (personagem da personagem do conto). Ambos estão contidos na alma do ator, sempre disposta a alargar-se ainda mais para fazer caber todos os outros que estão contidos nas profundidades dele mesmo, mas ainda não manifestos no espaço da superfície. De fato, a arte do ator é buscar dentro dele mesmo – dos arquivos de sua experiência –, o material que moldará os outros que ele essencialmente não é, mas que, entretanto, não existem fora dele – a não ser como referências desconectadas. O ator mantém um controle sobre a evolução do seu material artístico que a personagem não possui e ignora que exista: o ator vive a cena de sua personagem sabendo que ela é ilusória e falsa, e mais que isso, tem o poder de controlá-la e manipulá-la como desejar, objetivando atingir um fim; a personagem vive as cenas de sua própria vida como reais e não possui o mínimo poder de dirigi-la, é sim por ela conduzida. Estas duas pessoas respiram em um mesmo corpo e não lutam entre si, porque vivem juntas.

O homem contemporâneo do mundo real das grandes cidades, por sua vez, vive um conjunto acelerado de situações não explicáveis, e muitas vezes não relacionadas entre si, com a certeza de que possui as rédeas do controle sobre a própria vida rotineira e determinada, que ainda exige dele diversos papéis sociais a serem cumpridos. O filho justo é diferente do cliente cauteloso, que é diferente do estranho frio e calado do metrô, mas todos eles se encontram dentro do corpo de um ator que os controla relativamente. E os acontecimentos externos absurdos dirigem a vida deste ator, como uma equipe de filmagem ou uma direção teatral que define suas marcações. Assim, este homem prepara dentro de si as personagens que cada contexto social exige dele e que, em última instância, controla seu modo de agir, de modo que, nesta sociedade contemporânea, todos os impulsos da natureza humana têm um espaço de ação delimitado pelas convenções culturais que já estão em vias de globalização. As situações sociais são como cenas que exigem uma marcação prévia de deslocamento dos atores, e estes precisam tecer uma porção de máscaras adequadas e já elaboradas previamente para cada peça e decorar um texto prévio que admite poucas improvisações. Nesta técnica tudo é dado de antemão, basta aprender a executá-la. A perplexidade, o medo, a angústia podem aparecer como sintomas iniciais de um estranhamento face ao alter, mas, tão logo sejam incorporadas as convenções adequadas para cada contexto, o caráter se molda a produzir as personagens convenientes. E assim, esquece-se mais sobre a própria coerência de caráter do que a impressão que o mundo terá sobre os comportamentos.

É próprio do gaúcho o orgulho mortal de sua própria terra, e cedo ou tarde este orgulho se manifestará, uma vez inscrito no próprio DNA, principalmente no contato com um alienus. A firmeza do caráter do gaúcho de fronteira se apresenta a qualquer um, esteja onde estiver, e a certeza deste caráter é o que constitui a força de sua presença, a certeza da própria identidade. Érico Veríssimo, gaúcho interiorano nascido no centro-esquerdo do estado, em seu O tempo e o vento, gloriou seu povo, contando sua origem através da saga das famílias Terra e Cambará. Seu filho, Luís Fernando, nasceu e viveuem uma Porto Alegre onde a força da tradição gaudéria ia-se paulatinamente mesclando com a força da onda globalizante, aquela mesma série de convenções que nivelam os comportamentos múltiplos e esperados. A situação que se vai configurando na medida do advento dos novos tempos sensibiliza o filho daquele que escreveu a epopéia gaúcha até o ponto de auto-discutir o seu próprio fazer literário – e o fazer literário daqueles que vivem o seu tempo.

O escritor Luís Fernando representa um homem atormentado pelo ofício de escrever que nunca se decide pela melhor nota de suicídio. Ele amarra sua forca, prende a corda no pescoço, mas logo se lembra de aprimorar a nota. Vai ao computador, apaga algumas expressões extras a fim de enxugar o texto e deixá-lo mais categórico, relê a própria nota, acha-a curta demais, acrescenta ainda mais algumas frases. Em seguida, volta para a forca, porém lembra-se ainda de uma frase de Borges, vai ao computador e acrescenta-a junto à nota. Levanta-se, põe-se a olhar um longo tempo a tela do computador, quase volta à forca, mas decide acrescentar ainda um parágrafo. Era isso? Talvez sim, ele o releria no dia seguinte, pois estava cansado. Arquivou sua nota de suicida na memória do computador e foi dormir. Eis o que ele escreveu[1]:

No fundo, no fundo, os escritores passam o tempo todo redigindo sua nota de suicida. Os que se suicidam mesmo são os que a terminam mais cedo.
Há os que se suicidam antes para escapar da terrível agonia de encontrar um final para a nota. O suicídio substitui o final. O suicídio é o final.
Borges disse que o escritor publica seus livros para livrar-se deles, senão passaria o resto da vida escrevendo-os. O suicídio substitui a publicação. O suicídio é a publicação. No caso, o livro livra-se do escritor.
Há escritores que escrevem um grande livro, ou uma grande nota de suicida, e depois nunca mais conseguem escrever outro. Atribuem a um bloqueio, ao medo do fracasso. Não é nada disso. É que escreveram a nota, mas esqueceram-se de se suicidar. Passam o resto da vida sabendo que faltou alguma coisa na sua obra e não sabendo o que é. Faltou o suicídio.
No fundo, no fundo, a agonia é saber quando se terminou. Há os que não sabem quando chegaram ao final da sua nota de suicida. Geralmente são escritores de uma obra extensa. A crítica elogia sua prolixidade, a sua experimentação com formas diversas. Não sabe que ele não consegue terminar a nota.
É claro que o computador agravou a agonia. Talvez uma nota de suicida definitiva só possa ser manuscrita ou datilografada à moda antiga, quando o medo de borrar o papel com correções e deixar uma impressão de desleixo para a posteridade leva o autor a ser preciso e sucinto. Tese: é impossível escrever uma nota de suicida num computador.

A crueza da nova realidade atrapalha a arte de escrever diante da perplexidade de uma multiplicidade de identidades que o homem deste tempo assume em cada fragmento de tempo, sacrificando o valor e a beleza da identidade própria a favor da administração que a velocidade do mundo coloca sobre os modos de ser. Nada parece se ajustar a nada: talvez o que seja agora não seja mais de aqui a pouco. Este é um estado de espírito cujas angústias alimentam sempre a busca por retificar as coisas, relê-las e redescobri-las para tentar encontrar o alívio dela mesma, projetando o mundo como a finalidade ideal e deixando sucumbir o seu próprio ser. E assim, caminha-se em círculos em que a angústia é, ao mesmo tempo, a produtora da busca por superá-la e o resultado inevitável desta mesma busca, pois onde não existe identificação, não pode existir certezas; e onde estas não existirem, certamente a angústia estará presente.

Lorenzo Baroni Fontana


[1] Excerto retirado de VERISSIMO, Luis Fernando. O suicida e o computador. Porto Alegre: L&PM, 1992.

Published in: on 6 Mai 2012 at 0 h 19 min  Laissez un commentaire