A experiência da angústia na poesia provençal

Não obstante a erudição neoclássica dos séculos XVI, XVII e XVIII tenha enxergado e querido estabelecer a Idade Média como tenebrosa e suas manifestações artísticas desprovidas dos eternos modelos de beleza clássica – uma espécie de pausa da razão humana, que necessitava de um pouco de escuridão para renascer mais fortalecida sob as luzes mais brilhantes do racionalismo –, o romantismo do século XIX se faz dela protetor exagerado e tenta reparar as injustiças neoclássicas concernentes às instituições culturais da Idade Média. De fato, o levante que os oitocentos operam a favor das instituições culturais da Idade Média possui a mesma carga de energia daquele operado pelo Iluminismo, porém com o sinal contrário: da completa negação e tentativa de degradação passa-se ao encantamento deslumbrado. Como o passado é a interpretação que dele se faz, a história – sua interpretação – se faz sempre presente àquele que a interpreta, e assim surge sempre um novo passado perante os olhos de um novo presente. Sob esta luz, eu posso falar de duas Idades Médias opostas, mas com forças semelhantes – duas construções ou interpretações opostas –, as Trevas dos iluministas e o Paraíso exuberante dos românticos, estas duas imagens criadas a partir de sentimentos fortes em relação à construção de um futuro, uma desejando o império de uma razão universal e outra valorizando as diferenças identitárias e as razões alternativas individuais. A experiência destes exageros nos ensina a ser prudentes quando temos diante de nós uma parcela considerável de literatura medieval – a poesia provençal – que, antes de ser mundana ou maravilhosa, é a rica expressão de homens inseridos em um contexto sócio-cultural.

Victor Hugo, um homem essencialmente oitocentista, propõe, no prefácio da peça Cromwell, sua divisão ideal dos tempos em três, como uma primeira tentativa de expiar os preconceitos neoclássicos em relação ao passado. O primeiro corresponde ao despertar da humanidade e a interpretação do mundo através dos fenômenos naturais. O mundo é um espaço aberto de descobertas a todos os homens e eles louvam a força criadora deste mundo – a natureza e suas manifestações – através de hinos e odes. Em suma, é um tempo cuja consciência é predominantemente lírica e está constantemente em estado de encantamento com as descobertas da infância da humanidade. A segunda era de desenvolvimento humano corresponde ao meio-dia solar, em que os homens organizam-se em comunidades e passam a defender valores cívicos pertencentes ao grupo como um tesouro de sua identidade. Surge então a epopeia, um meio de expressão dos valores das conquistas bélicas, dos herois, das deidades e cerimônias religiosas cujo ponto de partida é a tomada de uma consciência universalizadora da própria identidade como forma de valorização desta identidade. O mundo inteiro da maturidade humana está aqui e agora. A última fase nasce com a evangelização, uma espiritualização da religião, que interpõe um abismo entre a alma e o corpo, entre o homem e Deus – fato do qual sobressaem múltiplas consequências encontráveis na poesia provençal.

O cristianismo, de fato, é a grande causa da mudança espiritual na passagem das duas eras indicadas por Victor Hugo. A religião dos antigos – especificamente dos gregos e latinos – caracteriza-se por sua materialidade e pela aproximação entre as esferas divina e humana. Na poesia antiga, os deuses são representados plástica e espiritualmente semelhantes aos homens, uma vez que possuem uma forma corporal moldada segundo as regras de uma beleza universal do corpo humano, e são tomados por sentimentos essencialmente humanos, como a alegria desmedida ou a fúria e a inveja. No que concerne à vida do homem na pólis, a própria organização cívica – e religiosa – responde por ele. Cada cidadão possuindo um papel específico dentro de uma sociedade culturalmente fechada pressupõe uma certa conformidade sobre o próprio destino, um destino que este cidadão tem como único e certo. Ademais, ao explicar o funcionamento da esfera divina a partir de moldes humanos, esta sociedade fecha-se em si mesma – ela se auto-explica a partir de si mesma – e em suas construções culturais, o que desenvolve, por consequência, um tipo de poesia que exprime um estado de espírito forte e seguro de si, mergulhado na certitude dos caminhos a seguir.

Contrariamente, com o advento de uma visão de mundo dualista cristã, a alma humana angustia-se com as possibilidades incertas de seu destino, da vida após a morte e do desconhecido – o Deus escondido. O cristianismo instaura a certeza da ruptura entre a alma e o corpo e põe na obscuridade o futuro desta alma quando chegado o momento da separação com o corpo. Mesmo no Antigo Testamento, o espírito de Deus, ainda que poderoso, apresenta-se fugidio, algo como uma voz reinante sem forma estabelecida e que nunca aparece, mas que, no entanto, corresponde à fonte a partir da qual tudo alvorece e se desenvolve sem qualquer explicação de ordem racional. O cristianismo incute, antes de mais nada, um sentimento perante a incógnita da vida, uma tentativa de explicação da vida – mesmo que esta explicação seja silêncio. Portanto, o que antes era fechado na cultura dos homens da segunda era de Hugo, abre-se na terceira era com a evangelização, de modo que, a direção do destino do homem deste tempo torna-se dúbia e faz surgir na alma dele sentimentos não muito presentes na alma do homem de cultura fechada: a angústia e a melancolia. O caráter de verdade absoluta sobre tudo desde o início dos tempos que o cristianismo profere a respeito de si mesmo alimenta ainda mais o sentimento de angústia e melancolia do homem cristão, uma vez que ele não participa, como nas culturas fechadas, da construção desta verdade e esta verdade dele nada há, mas há sim de algo fora dele e que lhe escapa.

Retomando a imagem criada por Victor Hugo, a terceira fase da civilização humana representa o deitar do sol, um momento em que as sombras da noite lutam com as luzes do dia e saem vitoriosas. Igualmente, duas forças combatem-se dentro do homem cristão, que é, ao mesmo tempo, corpo e alma, e ele não pode prever o destino desta última, ainda que saiba haver algum reservado para ela. A representação do amor na poesia provençal, cujo tratamento sincero do desespero ao amor é inédito, parece compartilhar desta angústia dualista entre alma e corpo que é tão característica do seu tempo, pois põe em cena um homem que venera não apenas moralmente a mulher que é o objeto de seu amor, mas também sensualmente através da sua beleza física – o que, em parte, pudesse causar certa repulsa por parte da Igreja. Este estado de alma angustiado é o que Hugo chama de drama, um drama cuja raiz penetra a verdade cristã, na medida em que esta verdade se revela como tal e dela mesma deve retirar todas as consequências perturbadoras sobre a falta de certeza acerca do futuro.

Em Um amante tímido de Giraut de Bornelh, a angústia do protagonista que não sabe como se dirigir à sua amada é o tema central. A angústia surge pela falta de certeza acerca das reações – e da aceitação – da dama frente a seu cortejo, e este é um excelente motivo para que sua alma se dilacere ante a dúvida e se sinta agonizante. Aqui reaparece a dúvida diante do destino e toda a melancolia que ela causa, diferentemente da representação literária dos homens da segunda fase humana – as culturas fechadas –, que, por estarem certos sobre seus caminhos, não conhecem o medo e a dúvida, e, portanto, não experenciam a angústia.

Eu gostaria de explorar ainda o tema da angústia, colocando-a como possível causa da necessidade do apego fervoroso dos cortesãos às suas amadas. Se a era cristã instituiu a divisão do ser humano em corpo e alma, e as manifestações de ambas as partes do homem não coincidem exatamente – e muitas vezes caminham em direções opostas –, parece que por isso a angústia está aí instalada. Não se duvide que, a partir desta angústia, a alma necessite de um apoio em que encontrará seu alívio, algo em que crer fervorosamente. Este algo pode bem ser os símbolos da própria religião cristã, ou alguma parte de seus mitos, como, por exemplo, a história e o sofrimento de Nossa Senhora. Este exemplo parece ser um ponto de partida importante em relação à valorização da mulher na sociedade que conheceu o despertar da poesia trovadoresca – que, aliás, por seu próprio termo nos remete à necessidade de procurar e encontrar alguma coisa (e quem procura algo busca-o por alguma necessidade não preenchida para o conforto corporal ou espiritual). A necessidade de prosternar-se diante de uma mãe e a obtenção de sua proteção advém deste sentimento de angústia de que falei acima. Necessariamente, quando este sentimento escorre das bordas da religião e adentra o domínio do mundano, o objeto aliviador da angústia também muda, ainda que a necessidade de amar e ser protegido permaneça intacta, já que esta necessidade é a expressão da consciência de um tempo histórico.

É em função de tudo isso que, para o trovador, amar é uma necessidade, e não simplesmente um capricho ou uma coincidência. Sobretudo amar uma mulher hierarquicamente superior, o que no contexto social dos trovadores poderia equivaler a uma relação de suserania e vassalagem entre os amantes, uma vez que o estado amoroso do homem na poesia provençal exige seu servilismo em relação à amada. Evidentemente o culto à imagem feminina dentro do cristianismo transpõe aqui as barreiras da religião para adentrar no domínio do que é mundano. A partir disso, verifica-se que todo o apelo ardoroso dispensado a Nossa Senhora, é, paralelamente, na poesia provençal, direcionado à dona: o homem a serve e se sente alienado diante dela, ela o fascina e se torna objeto de sua devoção.

Entretanto, juntamente a toda esta adoração que nos parece paralela à adoração religiosa e moral existe uma motivação sensual bastante forte em alguns dos poetas provençais – alguns inclusive desassociam o amor do casamento e cortejam apenas as mulheres casadas, maduras e influentes –, o que provavelmente não iria de encontro com as doutrinas religiosas do cristianismo que, no final das contas, exercia com elas um grande controle social através de suas instituições rígidas. Sem sombra de dúvida, o ponto de partida do amor na poesia provençal é a beleza feminina e o despertar de uma consciência sensível e sensual, da qual se podem suceder outras formas de admiração moral, seja de proteção ou de louvor à magnitude social da mulher. Portanto, ainda que na poesia provençal haja semelhanças identificáveis com o cristianismo na maneira de venerar a mulher, o ponto de partida e o objetivo primeiro são completamente diferentes, a saber, o apelo sensual feminino.

A falta de certeza de que o cortejo atinja o seu fim certamente é um fator na geração da melancolia no apaixonado, mas, levando-se em conta que a busca do amor e o sofrimento por ele parece ser um fim em si mesmo para o apaixonado – sofrimento fora do qual não se faria a genialidade dos poetas trovadores –, resgata-se uma semelhança importante com o culto de Nossa Senhora: a necessidade de buscar algo que alivie a tensão interna própria do tempo. Esta tensão passa a ser retro-alimentada pelo não atingimento do desejo e assim aumenta a necessidade da busca e da veneração de algo (ou alguém) que seja o meio pelo qual o desejo encontrará finalmente sua realização. Acredito que, dessa forma, seja possível explicar a importância e a possível origem da angústia na poesia provençal, que, aliás, parece estar ausente da poesia épica ou nas odes dos tempos primordiais. Mesmo que não fosse considerada como sintoma da consciência de um tempo cristão, a angústia é caracterizadora da expressão literária dos trovadores, que psicologicamente sempre estão em busca do amor feminino que lhes aliviará esta angústia.

Lorenzo Baroni Fontana

Published in: on 19 juillet 2012 at 19 h 22 min  Laissez un commentaire  
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La maison où j’ai grandi

Un peu de mon côté « chanteur ».
Réagissez!

Lorenzo Baroni Fontana

Published in: on 1 juillet 2012 at 22 h 51 min  Laissez un commentaire