O século XIX, ao operar as transformações econômicas em escala global, definindo papeis mercadológicos aos Estados e impondo o progresso como guia mestra essencial, trouxe ao Brasil, agora senhor de seu próprio destino, a incumbência de operar o progresso dentro de bases científicas. A multiplicidade cultural e a miscigenação étnica fantasticamente espraiada pelo território brasileiro – e especialmente no coração do Brasil, o Rio de Janeiro – não correspondiam ao ideal de brasilidade, a procura por uma identidade nacional para o jovem país pretendida pelos reformistas, a saber, aquela identidade abstrata acoplada a uma “raça” europeia branca e pura que deveria fazer do Rio de Janeiro a Paris dos Trópicos. O Distrito Federal foi a praça ideal para a encenação da modernidade republicana brasileira que já se impunha na década de 1890. Essas transformações custaram a invisibilidade por parte do poder público das camadas pobres da população. Sendo uma cidade predominantemente comercial, o Rio de Janeiro viu seu centro inflar de homens e mulheres livres e pobres, prestadores de serviços e responsáveis pela logística da cidade.
Foi inserido nesse debate político e cultural que o Naturalismo e O Cortiço de Aluísio Azevedo se desenvolveram representativamente como reflexo das teorias científicas racistas que exerceram influência determinante no Brasil em busca de identidade. O progresso nomeou, por seus padrões de reformas e hábitos culturais importados, a cidade do Rio de Janeiro como a Paris dos Trópicos, preparada para o processo civilizatório, mas de costas para a diversidade cultural presente no seu subúrbio da época (principalmente a zona portuária e Estácio). E é este subúrbio recheado de cabeças de porco – o ancestral da favela – o tema de Azevedo, um conjunto de estalagens dispostas arquitetonicamente desconfiguradas à moda portuguesa que reunia toda a verdadeira brasilidade confluente no Rio de Janeiro. A falta de visibilidade dos homens pobres por parte do poder público não extinguiu a necessidade de mão de obra barata para os serviços domésticos e para toda a rede logística da capital brasileira.
O pano de fundo da obra de Azevedo é o determinismo científico que encaixava modos de comportamento adequados a meios histórico-sociais, um pressupondo o outro, uma tentativa de explicar a diferença e mantê-la marginal às reformas. O processo civilizatório era antônimo da sensualidade da mulher mestiça e estava, portanto, a léguas de distância do meio social ocupado por esta mulher. Mas esta mulher – e toda a sua estirpe social, que ela representa lindamente – estava presente na cidade, bordeando-a e ameaçando sua responsabilidade de elevar o país a uma representação falsa de modernidade européia intertropical. Certos personagens do romance vivem fortemente este dilema de fronteira: a vaidade da vida bela e organizada de alta sociedade que o ego ambiciona e os impulsos de animal que sente o cheiro sensual da carne que o superego se esforça por conter. A vida dos personagens está dramaticamente condicionada a esta dicotomia. O meio em que o sujeito ocupa determina sua atitude, mas não dissolve a vontade de se lambuzar do outro lado da fronteira. E assim o Brasil vai vivendo um teatro de tensões entre o desejo, a convenção e a natureza íntima.
Azevedo pintou muito bem o carioca do subúrbio, o mestiço brasileiro que ainda não havia ascendido a símbolo nacional e vivia na escuridão da ponta do tapete para onde a civilização o havia varrido do centro carioca, lugar escolhido para o laboratório da modernidade brasileira. O ser e o viver carioca são representados perfeitamente dentro do determinismo científico: vivendo na pobreza, ele era alegre e harmonioso, descompromissado e sem tendências bélicas, muito afeito a festividades e, principalmente, como elemento do litoral, irmanava lindamente com todos vindos de fora (seja via continente ou via mar), em um movimento antropófago de pertencimento total entre qualidades distintas. O Brasil poderia ser encontrado ali. Rita Baiana, a mestiça que representa a crueza brasileira da mulher simpática, alegre e malandra amigou-se a um português sério e respeitoso de clima temperado, que logo em contato com os bons ares cálidos da Guanabara sente a moleza no corpo e na alma como moldado por um modo de vida intertropical obrigatório. A dor pela falta da terra natal cede languidamente espaço ao desejo selvagem de viver a vida brasileira, um impulso descontrolado em busca da mistura, prática bastante afeita aos portugueses.
Esta prática republicana do final do século XIX e princípio do século XX, reconstruída sensivelmente pelo gênio literário de Azevedo, parece constituir uma linha de raciocínio crônico no Brasil, um país em que até hoje priorizam-se os tecnicismos, em detrimento dos planejamentos de longo prazo. As parcelas mais empobrecidas da população estão tanto mais abandonadas que jamais, ainda que o discurso oficial corra a vociferar o contrário e a cantar suas melhorias aparentes. O lucro dos grandes aglomerados empresariais é a diretriz que guia os procedimentos governistas, seu maior e melhor cliente. Neste país, o conhecimento – aquele que amadurece e modifica a consciência e os estados de espírito para um bem futuro – possui menor valor que o tecnicismo prático que resolve as urgências do agora. Dessa forma, o Brasil continua a maravilhar-se com seus números irrepresentativos e suas estatísticas maniqueístas.
Lorenzo Baroni Fontana